Dr. Mauro Muszkat fala sobre a Música e Neurociência

Resumo

Trata-se de artigo que analisa a relação da música com as neurociências, particularmente a organização cerebral das funções musicais. Os estudos de neuroimagem funcional revelam que a lateralização e topografia da ativação cerebral durante estímulo musical relaciona-se a múltiplos fatores como familiaridade ao estímulo, estratégia cognitiva utilizada para o reconhecimento melódico, rítmico e tímbrico e mesmo do treinamento musical prévio. A relação entre a música e as mudanças na atividade elétrica cerebral é sugerida a partir dos casos da chamada epilepsia musicogênica, das descrições das manifestações “musicais” de crises parciais psíquicas ou dos relatos anedóticos de mudanças dos padrões eletrencefalográficos interictais durante a audição de músicas de Mozart. O artigo ressalta a necessidade de uma abordagem multidisciplinar que considere a própria estrutura e sintaxe musical na formulação metodologica de trabalhos científicos que visam estudar a relação da música com as neurociências.

Abstract

This paper is a revision article about music and brain function

Introdução

O tema que iremos discorrer é sobre as várias faces entre Música e Neurociência, principalmente no que tange a importância aos estudos em relação a organização cerebral das chamadas funções musicais. O interesse crescente nas pesquisas da relação musica e cérebro, a meu ver, são reflexo de dois fatores. O primeiro relaciona-se a introdução recente de novas técnicas de neuro-imagem como a Tomografia com Emissão de Pósitrons (TEP), ou a Ressonância Nuclear Magnética Funcional (RNMf), que permitem "visualizar" as mudanças funcionais e topográficas da atividade cerebral durante a realização de funções mentais complexas. Assim, hoje já é possível estudar as mudanças regionais do fluxo sangüíneo do metabolismo e da atividade elétrica cerebral durante tarefas de natureza cognitiva como por exemplo, enquanto um indivíduo processa estímulos sonoros, sejam estes meros sons puros senoidais, ruídos, padrões rítmicos ou mesmo "música", em sua acepção ampla. O interesse pela música relaciona-se ou reflete uma mudança de paradigma, que está ocorrendo, tanto nas ciências humanas como nas ciências biológicas, e insere-se no terreno da interdisciplinaridade, no qual as especializações dão lugar às fronteiras e à unificação de áreas antes sectarizadas do conhecimento como as ciências e as artes. Neste contexto não é de surpreender o crescente interesse na pesquisa das intricadas relações entre a “Musica” e a medicina, com ênfase à fisiologia, a neurologia e à psiquiatria

Música e Cérebro

Primeiramente é importante ressaltar aquilo que nós chamaremos de música, em nossa exposição. Consideramos como música, independentemente de toda conotação estético-cultural que esta envolve, todo o processo relacionado à organização e estruturação de unidades sonoras seja em seus aspectos temporais (ritmo), seja na sucessão de alturas (melodia) ou na organização vertical harmônica e tímbrica dos sons. Entendemos por funções musicais como o conjunto de atividades motoras e cognitivas envolvidas no processamento da música. A música, não resulta apenas da disposição de vibrações sonoras, mas sim da estruturação destas vibrações em padrões temporais organizados de signos cuja forma, sintaxe e métrica constitui-se em um verdadeiro “sistema” independente e complexo, na qual significante e significado irão remeter-se a estrutura da própria música, isto é, à forma e ao estilo musical. Assim falar sobre as relações, fisiológicas, comportamentais, psíquicas, afetivas, entre a música e o cérebro humano é nos remetermos ao diálogo entre estes dois sistemas cibernéticos complexos autônomos e interdependentes- a música e o cérebro. Assim o processamento musical envolve a integração bidirecional entre os componentes da estrutura e sintaxe musicais (ritmo, estrutura, intencionalidade) e os componentes funcionais do próprio cérebro, A figura I (reproduzida de Tomaino, 1998) esquematiza a integração dos componentes musicais na fisiologia humana, função que se estabelece pela modulação neurovegetativa dos padrões de variabilidade dos ritmos endógenos que, neste contexto, podem ser interpretados como correlativos fisiológicos da atenção musical.

O reconhecimento de alterações fisiológicas acompanhando o processamento musical, podem auxiliar o desenvolvimento, em bases funcionais, de procedimentos para intervenção musical adequados. Assim, as alterações fisiológicas da estimulação sonora pode refletir-se nas mudanças dos padrões no reflexo de orientação, na variabilidade das respostas fisiológicas envolvidas nos processos de atenção e expectativa musicais ou na mudança de frequência , topografia e amplituder dos próprios ritmos elétricos cerebrais.

É importante ressaltar,que o interesse pela relação música-cérebro não reside somente no fato de a estimulação sonora envolver funções neuropsicológicas bastante complexas com ativação de áreas corticais multimodais, mas pelo fato da música estar históricamente inserida no campo das artes, com toda conotação cultural e simbólica que isto acarreta. O fazer musical encerra e integra funções do sentir, processar, perceber em estruturas ou numa estética de comunicação que é por si só forma e conteúdo, corpo e espírito, mensageiro e mensagem.

A música, nas suas várias manifestações enquanto estética, terapia ou ritual, evoca o humano e sua contradição. Seus elementos de lógica, proporção e simetria estão intimamente relacionados e imbricados aos elementos de tensão, relaxamento que são sentidos, ou conceitualmente interpretados somente em bases abstratas que requerem a definição do homem, suas formas de sentir e pensar o mundo, e portanto, seu sistema cultural e social de decodificação. Assim, não é de se estranhar que a evolução da estética musical do ocidente esteja intimamente relacionada com a evolução do pensamento científico de maneira indissociável.

História Paralelas - Música e Cérebro

A música, em seus aspectos estruturais e na sua organização estritamente temporal, traduz e reflete a consciência que o homem tem do próprio tempo, seja este relacional (que lida com correlação linear entre os eventos, antecedente/consequente), ou psíquico que traduz os processos perceptivos, cognitivos e afetivos numa ordem que reflete ritmos circadianos internos, estados neurovegetativos e emocionais de expectativa, tensão ou repouso.

No período medieval a visão unidimensional do universo físico e a forma de pensamento intuitivo, de tendência espiritual, eram representadas através de uma música monodimensional, de idioma modal, que expressava uma maneira de estar no mundo não dividida. Igualmente o cérebro era interpretado enquanto massa homogênia, um reservatório que distribuía seus humores vitais através dos ventrículos cerebrais. A partir do Renascimento, com a criação da perspectiva na pintura e da convergência tonal e harmônica na música há a emergência de uma visão racionalista de um mundo dividido, que separa o eu (self) do espaço newtoniano que o circunda (mundo) no qual o tempo, métrico e facetado, representa e reflete as relações de causa-efeito. A música, basicamente temática, com um tempo métrico, enquanto pulso, marcado na música barroca como otic-tac de um relógio, reflete o pensamento determinista de tendência racionalista e materialista. Esta música temática e métrica é a música que dominou a estética ocidental por mais de 500 anos. A visão dualista e racional deste período apresenta o cérebro enquanto centro orgânico privilegiado da vida psíquica. Na visão dos frenologistas do século XIX, o cérebro era compartimentado em várias áreas abrigando as diferente funções psíquicas como as emoções e comportamentos humanos mais sutis, inclusive o amor à musica. A música contemporânea do início do século XX caracteriza-se pelo abandono a referências fixas como a tonalidade, pela relativização do espaço-tempo, organizando as estruturas sonoras a partir de configurações ou “gestalts”, e inserindo a criação musical na acausalidade, no probabilístico e na capacidade criadora do intérprete e do ouvinte. Neste enfoque, o tempo vivencial (não medido pelo relógio), o silêncio expressivo, a estrutura temporal assimétrica integram um fluxo multidirecional de sons em representações gráficas que evidenciam o tratamento dos signos sonoros enquanto eventos não-lineares. Tais conceitos de espaço-tempo estão também intimamente ligados ao pensamento científico moderno, traçado nos fundamentos teóricos da física quântica e da teoria da relatividade. Neste sentido, aproximamo-nos da visão física ou material do mundo com a visão estética da nova música, uma vez que ambas traduzem a consciência autoreflexiva, a maneira pela qual dimensionamos, relacionamos temporalmente e mesmo nomeamos nossos próprios processos psíquicos de “ver, decodificar, e reinterpretar” o mundo em que vivemos. Atualmente, o cérebro é visto como um sistema complexo de áreas específicas e não-específicas colaborando à integração das funções cognitivas, afetivas e sensoriais. Este sistema funcional atua de maneira concêntrica e complementar, atribuindo distintos papéis funcionais ao hemisfério cerebral direito e ao esquerdo (assimetria funcional hemisferica), e também com hierarquias distintas entre as diferentes áreas subcorticais e neocorticais. A maneira com que a ciência vê a relação entre o cérebro e as funções musicais surgiu conjuntamente aos estudos da chamada “Assimetria Funcional Hemisférica” e os trabalhos verdadeiramente pioneiros só foram realizados na segunda metade do nosso século, principalmente em pacientes portadores de epilepsia Entre esses, podemos ressaltar os de Critchley (1937) na descrição da epilepsia musicogênica, os de Penfield (1954), que durante estimulação elétrica cerebral durante procedimentos neurocirúrgicos descreveram alucinações auditivas complexas quando da estimulação do giro temporal superior, os de Wada & Rasmussen ( 1960) utilizando o teste de WADA, com a inativação temporária de um hemisfério cerebral através de injeção intracarotídea de amital sódico verificaram em alguns casos a dificuldade para cantar apesar da preservação da fala; o de Kimura com as provas de estimulação auditiva (dicótica) de melodias demonstrando a superioridade do hemisfério direito para o processamento melódico, e os trabalhos mais recentes de Zatorre e col. (1994) e Chauvel e col.(1998) sobre as disfunções musicais em pacientes submetidos à lobectomia temporal.

Música e Neuroimagem

A música, mais do que qualquer outra arte, tem uma representação neuropsicológica extensa. Por não necessitar, enquanto música absoluta, de codificação linguística, tem acesso direto à afetividade, às áreas límbicas, que controlam nossos impulsos, emoções e motivação. Por envolver um armazenamento de signos estruturados estimula nossa memória não-verbal (chamadas áreas associativas secundárias). Tem acesso direto ao sistema de percepções integradas, ligadas à areas associativas de confluência cerebral, que unificam as várias sensações incluindo a gustatória, a olfatória, visual e proprioceptiva em um conjunto de percepções que permitem integrar os várias impressões sensoriais num mesmo instante, como a lembrança de um cheiro ou de imagens após ouvir determinado som ou determinada música. Também ativa as áreas cerebrais terciárias, localizadas nas regiões frontais, responsáveis pelas funções práxicas de sequenciação, de melodia cinética da própria linguagem e pela mímica que acompanha nossa reações corporais ao som

Recentemente, os recursos de neuro-imagem funcional têm contribuído para novos e interessantes achados enfatizando-se a importância da lateralização hemisférica na percepção musical. Tais trabalhos sugerem certo grau de independência funcional e anatômica para o processamento (ou para estratégia de processamento) dos vários parâmetros sonoros. Neste sentido, foi possível mapear através dos trabalhos com TEP, as mudanças na ativação metabólica durante o processamento perceptivo e cognitivo dos constituintes da música. Assim Mazziota e col.(1982), encontraram que em tarefas de discriminação tímbrica, havia maior ativação de áreas frontais e temporais do hemisfério não-dominante. Lauter e col.(1985) confirmaram a organização tonotópica do córtex auditivo com ativação anterior e lateral para sons graves e médio posterior para sons agudos. Zatorre et al. (1994) observaram que a audição melódica passiva envolvia principalmente regiões temporais do hemisfério direito, enquanto provas mais ativas que exigiam memória tonal havia ativação de áreas frontais do hemisfério cerebral direito. Trabalho mais recente de Platel e col. (1997) estudaram a ativação de diferentes áreas cerebrais durante provas que envolviam alguns parâmetros psico -acústicos da música, a dizer: Identificação de mudanças de altura, regularidade ritmica, familiaridade melódica, Identificação de mudança tímbrica. Nas provas envolvendo familiaridade havia maior ativação do giro temporal esquerdo e do giro frontal esquerdo. O reconhecimento tímbrico ativava o giro frontal superior e giro pós central direitos, enquanto que as provas rítmicas envolviam áreas frontais inferiores e a ínsula do hemisfério esquerdo (dominante). Interessante também foi o fato de terem observado ativações de regiões occipitais, durante tarefa envolvendo o reconhecimento das alturas sonoras, sugerindo existir um recrutamento de áreas envolvidas nos processamento das imagens como uma estratégia visual para a decodificação das alturas dos sons. Além disso, observaram também que durante tarefas rítmicas, ocorre ativações na área de Broca (AB 44/6), estendendo-se à ínsula vizinha, sugerindo que essa região cerebral tem um importante papel no processamento de sons sequenciais, o que sugere existir um elo neurobiológico entre o ritmo musical e a fala expressiva.

De um modo geral, as funções musicais parecem ser complexas, múltiplas e de localizações assimétricas, envolvendo o hemisfério direito para altura, timbre, discriminação melódica, e o esquerdo para ritmos, identificação semântica de melodias, senso de familiaridade e processamento temporal e sequencial dos sons. No entanto a lateralização das funções musicais pode ser diferente em músicos, comparado a indivíduos sem treinamento musical, o que sugere um papel da música na chamada plasticidade cerebral.

Música e Linguagem

Música é também linguagem, segundo o eminente maestro e compositor Koellreutter, a música é uma arte que utiliza-se de uma linguagem. É linguagem, uma vez que utiliza um sistema de signos estabelecido naturalmente ou por convenção, que transmite informações ou mensagens de um sistema (orgânico, social, sociológico) a outro. Existem paralelos entre a linguagem verbal e a musical. Ambas dependem, do ponto de vista neurofuncional, das estruturas sensoriais responsáveis pela recepção e processamento auditivo (fonemas, sons), visual (grafemas da leitura verbal e musical), da integridade funcional das regiões envolvidas com atenção e memória, das estruturas eferentes motoras responsáveis pelo encadeamento e organização temporal e motor necessários para a fala e para a execução musical. No entanto, diferentemente da linguagem verbal o código utilizado na música não separa significante e significado, uma vez que a mensagem da música não está condicionada a convenções semântico-linguística, mas sim a uma organização que traduz idéias através de uma estrutura significativa que é a própria mensagem : a própria musica.

No entanto, do ponto de vista neurológico, as estruturas envolvidas para o processamento musical são funcionalmente autônomas e diferentes daquelas envolvidas com a linguagem, isto é, fala, leitura e escrita.. Pesquisas em pacientes com lesão cerebral têm mostrado que a perda da função verbal (afasia) não é necessariamente acompanhada de perda das funções musicais (amusia). A existência de afasia sem amusia e de amusia sem afasia indica uma autonomia funcional dos processos neuropsicológicos inerentes aos sistemas de comunicação verbal e musical e uma independência estrutural de seus substratos neurobiológicos..A dissociação entre afasia e amusia é flagrante quando se analisa as manifestações neurológicas de grandes músicos vítimas de lesões cerebrais localizadas. Assim o compositor russo V. I. Shebalin (1902-1963) após sofrer 2 AVC em território da cerebral média esquerda, apresentou afasia severa mantendo intacta sua habilidade para compor. O organista e compositor francês Jean Langlais (1907-1991) tornou-se afásico, aléxico e agráfico após hemorragia temporo-parietal esquerda, mantendo no entanto inalterada sua capacidade para compor, improvisar e ler notação musical. Maurice Ravel (1875-1937), em virtude de uma provável doença degenerativa progressiva, apresentava dificuldade na transposição musical, isto é, na passagem da modalidade auditiva para a visual e/ou motora, estando preservadas a percepção e a idéia sonoras, que embora intactas em sua mente, estava incapacitado para expressá-las através da escrita e execução musical.

Epilepsia e música

Quando se analisa as relações entre a epilepsia e música, dois aspectos devem ser ressaltados: a epilepsia musicogênica e o estudo das funções musicais em pacientes portadores de epilepsia parcial.

A epilepsia musicogênica corresponde à ocorrência de crises epilépticas desencadeadas por estímulos musicais. Não se constitui uma síndrome epiléptica, razão pela qual, deve-se falar em “crises epilépticas desencadeadas por música”. Trata-se de uma afecção rara (1 indivíduo em 10 milhões), ocorrendo geralmente após os 20 anos de idade. Muitos estudos indicam que esses pacientes são pessoas “interessadas em música”.

Neurologicamente, as crises são geralmente parciais complexas, com freqüente generalização secundária e usualmente coexistindo com outros tipos de crises espontâneas. Etiologicamente são, muitas vezes, crises sintomáticas, relacionadas à epilesia lesional. No trabalho original de Critchley descrevem-se 3 tipos de epilepsia denominada de acústico-motora. Um tipo seria a resposta à surpresa ou susto; o outro, frente a estímulos musicais intoleráveis (para o indivíduo), evocadores ou que produzissem desagrado e o terceiro tipo, mais raro, provocado por um estímulo de caráter monótono. O fato de diferentes tipos de crises coexistirem significa um indício fisiopatológico particularmente importante, por permitir a interpretação da epilepsia musicogênica como “o efeito da música em um cérebro epiléptico” . As anormalidades elétricas (EEG) são geralmente temporais, em ambos hemisférios e apenas poucos estudos assumem a localização temporal direita ou foco mediotemporal.

O autor refere-se à grande controvérsia relativa a fisiopatologia, de ser a crise o simples resultado de um ou vários estímulos que excitam o córtex cerebral, ou do recrutamento de áreas subcorticais e corticais amplas relacionadas com atenção, memória e associação musical.

Em relação à epilepsia parcial, podemos considerar que as pesquisas sobre estimulações elétricas realizadas em pacientes portadores de epilepsia do lobo temporal têm contribuído para o conhecimento de aspectos específicos das funções psicofísicas do cérebro, incluindo as funções musicais. Lesões e disfunções do lobo temporal podem incapacitar seriamente as habilidades musicais, como o canto ou a execução de sons, reconhecimento de sons e manutenção de ritmos.

Mediante estimulação elétrica do lobo temporal, principalmente ao nível do giro temporal superior, Penfield & Jasper surpreenderam-se com o número de vezes que o paciente relatava estar ouvindo música. Esta ocorrência verificava-se a partir de 17 pontos diferentes de estimulação elétrica, ocorrendo numa freqüência de 3% dos casos com “epilepsia do lobo temporal ”. A multiplicidade de experiências relatadas pelos pacientes era grande, variando desde vozes, piano tocando ou uma orquestra executando peças musicais complexas.

Outras pesquisas envolvendo epilepsia e música também têm merecido especial atenção, como as que se referem às chamadas crises parciais psíquicas simples, durante as quais, o paciente epiléptico pode relatar o que Penfield denomina de resposta experiencial que pode ser essencialmente auditiva e musical. O paciente pode recordar canções ouvidas na infância, ouvir vozes familiares, padrões sonoros complexos (ruidos) e até mesmo, música orquestral.

As crises epilépticas põem em evidência o mecanismo de funcionamento das áreas cerebrais, possibilitando o estabelecimento de uma relação entre determinadas alterações do comportamento e funções psíquicas e a localização e a lateralidade do foco ou da lesão.

França Correia e col. (1998) realizaram um estudo sobre a lateralização das funções musicais em pacientes com epilepsia parcial e sem conhecimento musical e concluíram que a presença do foco no hemisfério cerebral direito afeta o desempenho de funções de reconhecimento melódico enquanto que nos casos com foco no hemisfério esquerdo, a reprodução e organização rítmicas estão mais comprometidas.

Efeito “Mozart”

O efeito Mozart, descrito por Rausher e col. (1993), e bastante divulgado na mídia e alvo de inúmeras controvérsias na literatura, refere-se a descrição de melhora no desempenho neuropsicológico em provas espaciais, bem como mudanças neurofisiológicas, induzidas pela audição da música de Mozart. Mais recentemente tem sido investigado por Hughes e col (1998) em relação à atividade paroxística no EEG em pacientes portadores de epilepsia. O autor observou que a audição de Mozart (Sonata para dois pianos em Ré Maior, K448) induziu a uma significante redução da atividade paroxística interictal em 23 de 29 pacientes (79%), incluindo pacientes em coma. Observou ainda que não só a frequência da atividade paroxística diminuía, mas também a amplitude das descargas. O Mapeamento Cerebral realizado durante a sonata mostrava diminuição da atividade teta e alfa nas regiões centrais, com aumento da atividade delta nas regiões central e média.

O autor sugere que a arquitetura complexa da música de Mozart poderia relacionar –se temporo-espacialmente com a também complexa microorganização colunar do córtex cerebral (modelo “trion”), e semelhantemente a estimulação elétrica em padrão (como a observada após a estimulação da amigdala na frequência de 1 Hz ) poderia levar a um aumento do limiar convulsivo e diminuição das descargas paroxísticas no EEG. Embora interessante, tais achados, requerem confirmação posterior em novos trabalhos.

Musicoterapia

As respostas do homem ao som e à música são influenciadas por vários fatores que vão desde a receptividade física ao som, às habilidades ligadas à senso-percepção, à educação, à cultura e ao contexto social em que o indivíduo está inserido.

O som também representa uma das experiências sensoriais mais precoces do ser humano, por envolvê-lo já na vida intra-uterina, ocasião em que o feto é submetido a uma série de estímulos sonoros como a voz da mãe, os batimentos cardíacos, os sons articulares, o ritmo respiratório, além dos sons provenientes do mundo externo. Esses sons vão formar os engramas que ficarão marcados indelevelmente no psiquismo do homem, o que pode explicar o poder que esses elementos, bem como a música, exercem sobre ele . Observa-se, na literatura que a pesquisa fisiológica em musicoterapia tem sido não apenas uma pesquisa geral, direcionada à influência da música no ser humano, mas direcionada, muitas vezes, à aplicação clínica, o que tem proporcionado uma orientação para esforços clínicos. Uma vez que a música exerce influência sobre diversos sistemas fisiológicos, esse conhecimento pode ser aplicado em terapia, podendo ter quatro funções terapeuticas principais: atuar no sentido de melhorar a atenção, vinculada ao treinamento do desenvolvimento motor e/ou cognitivo; estimular habilidades sócio-comunicativas; favorecer a expressão emocional e estimular o pensamento e a reflexão sobre a situação de vida da pessoa.

A aplicabilidade dos recursos sonoros e musicais, tanto com fins diagnósticos como terapêuticos nutre-se das investigações que têm, como objetivo, o estudo da relação do “complexo som-ser humano” do ponto de vista fenomenológico, neuropsicológico, cognitivo e psicodinâmico. A musicoterapia, portanto, pode ser vista como um recurso terapêutico que se integra outras disciplinas que se ocupam da prevenção, tratamento e reabilitação de diversas enfermidades neurológicas e psíquicas. Por outro lado, deve estar inserida no campo da pesquisa, para estudar as estratégias utilizadas pelo cérebro no processamento dos diferentes estímulos musicais e investigar as influências psicofisiológicas da música com vistas a dar subsídios fisiológicos que possibilitem um trabalho clínico mais efetivo.

Considerações Finais

É importante que os trabalhos de música em neurociências, surjam da interação multidisciplinar de músicos, musicoterapeutas, neurologistas, neurofisiologistas, possibilitando a ampliação de nossos horizontes numa prática que integra profissionais que antes tinham suas atividades sectarizadas. Isto pode permitir uma comunicação mais eficiente, inclusive ao nível musical e estético propriamente dito, com doentes em busca de contato, isolados da comunicação por suas disfunções cerebrais e mentais. A busca de melhores correlações da música com a função cerebral irá exigir um trabalho multidisciplinar que considere a própria estrutura musical na formulação metodológica dos trabalhos. Tal esforço poderá levar inclusive à criação de músicas, específicas para determinadas situações de disfunção neurológica, baseadas nos registros e na variabilidade dos próprios sinais biológicos tempo-dependentes, como por exemplo a atividade elétrica cerebral. O esforco de trazer a música para as ciências de saúde poderá representar, por um lado, a transcendência de uma prática musical hedonista baseada apenas no ouvir-prazer e, por outro, a ampliação da visão da própria neurociência, para além do enfoque racionalista, que negligencia o subjetivo e o relativo expresso nas artes.

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